O tempo passava lentamente na fazenda dos Lancartos;
era como se a Terra tivesse parado de girar para os boias-frias. Todos tinham o
aspecto de famintos e desnutridos, as poucas horas de descanso e as péssimas
alimentações que lhes eram servidas os debilitavam e os transformavam em seres
submissos ao patrão; estavam sem forças para reagir. Por mais que Chacon
trabalhasse, ele e a sua mulher não viam como sair daquela situação. Se o país
não mudasse de direção com urgência, nada mais seria acrescentado às suas vidas,
jamais conseguiriam quitar suas despesas com alimentação. Suas roupas eram como
de presidiários em campo de concentração, e cada vez mais ficava devendo ao
patrão criando assim uma divida impagável, assim como os outros trabalhadores.
Os capatazes da fazenda os vigiavam dia e noite,
como se fossem prisioneiros de guerra. Chacon, usando o codinome José, mantinha
acesa sua chama de desejo da liberdade. Nos encontros na igreja, semestralmente,
mantinha contato com as forças de oposição, ou nas festas do padroeiro do país,
quando eram organizados em grupos pelos capatazes, colocados em carroças e levados
em caravanas à cidade por duas horas para ouvir o discurso de Don Lancarto e
tirar fotos para o seu jornal. Essas fotos eram publicadas na primeira página,
como se o povo apoiasse seu governo e fosse feliz. Outros encontros com os
opositores também se dava nas duas missas anuais que lhes eram permitidas pelo
patrão, onde se dava o encontro com o padre Francesco, que os comunicava das
mudanças ocorridas no país.
Chacon escrevia trechos dos folhetos, que se propunham
a levantar o ânimo do povo, que eram entregues ao padre Francesco
clandestinamente, deixados debaixo dos bancos da igreja para serem recolhidos após
as missas. Chacon começava os textos lembrando o povo de San José, para manter
acessa a esperança de dias melhores, e convocando o povo a resistir ao clã. Os
textos eram impressos pelo padre durante a noite, colados em bancos da praça, em
prédios públicos, divulgando que Chacon estava vivo e ativo. Levados pelo padre
Francesco escondidos dentro de livros da igreja, os panfletos eram distribuídos
por todo o país, pedindo apoio à causa.
Os anos passaram, e Venâncio se tornara um jovem
forte. Apesar do pouco estudo que tivera, se mostrava inteligente, era
simpático e extrovertido e mantinha o bom relacionamento com a família Lancarto
Aranha. Ele estava absorvendo e se desenvolvendo com os conceitos ideológicos absorvidos
pela convivência com a família Lancarto, o que deixava o seu pai receoso e
preocupado com o futuro e a segurança. Chacon começava a achar que seu próprio
filho poderia estar se transformando em um inimigo ideológico, e não confiava conversar
certos assuntos na sua frente com Mercedes; isso se tornara perigoso. Chacon se
limitava a conversar assuntos corriqueiros, não abordando nada que se referisse
ao movimento, e mesmo quando Venâncio se mostrava interessado, ele
desconversava. Para Chacon, seu filho fora abduzido por algo fora do seu
controle, já estava possuído, e havia o real perigo naquela amizade que seu
filho desenvolvia com o patrão e principalmente com seu filho, cinco anos mais
velho do que ele. Os dois cresciam juntos na casa da fazenda.
Venâncio se tornara o auxiliar direto de Lancarto,
que o ensinara a montar e a cuidar dos animais. Lancarto estudava fora da
fazenda, pois seu pai construíra um colégio somente para estrangeiros de origem
inglesa na capital de San José de Talvegue. Os finais de semana ele passava na
fazenda.
Os pais de Venâncio continuavam prisioneiros, sem
opção de fuga. O país estava dominado pelo clã que mantinha o regime de terror.
O fato de viverem na casa comunitária com outros trabalhadores rurais deixava
Venâncio revoltado e sempre culpava os pais pela situação. Mas Chacon, percebendo
que ele não poderia mais escolher seu próprio futuro, conversava diariamente
com ele, aconselhando a nunca comentar o seu passado, muito menos o da família,
pois isso colocaria seu futuro e a vida da família em risco. Eles sabiam que a
família Lancarto continuava financiando o extermínio da luta armada opositora
do regime governamental implantada por eles por todo o continente.
Don Lancarto agora contava com o apoio de grupos
externos disfarçados de empresários interessados nas riquezas minerais. Chacon
e Mercedes sofriam calados, percebendo nitidamente que seu filho havia crescido
com outra visão do seu país. Venâncio reverenciava com frequência a família
Lancarto, não se importando com suas conquistas sanguinárias.
Em um domingo, dia primeiro de maio de 1936, Chacon
descansava na sombra da soleira da casa comunitária, enquanto sua mulher costurava
um remendo em sua camisa de trabalho. Há mais de um ano eles não recebiam uma peça
nova de roupa, e esse era o quarto remendo feito na mesma camisa.
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